Por: Pe. Assis Soares - Pároco de N. Sra. de Fátima, em Campina Grande.
A palavra “vocação” qualifica muito bem as relações que Deus 
estabelece com cada ser humano. Na realidade dizemos, “cada vida é uma 
vocação” porque é um chamado e resposta, um diálogo de amor que Deus 
inicia com sua criatura, fazendo-a sentir-se amada por um amor infinito e
 chamada a uma missão especial, a santidade. “Este ideal não é um 
caminho extraordinário, que possa ser percorrido apenas por algum 
‘gênio’ da santidade, mas o caminho ordinário que deve ser palmilhado 
por qualquer cristão”. (João Paulo II) Portanto, ao falar de “vocação 
cristã”, nos referimos a um chamado específico à santidade da vida, o 
cristão é chamado a viver uma nova vida, a “viver em Cristo”. A vocação é
 na vida de cada homem ou mulher, o que dá sentido a toda a sua 
existência. Enganar-se acerca da própria vocação pode implicar a 
frustração, o fracasso total de uma vida.
A vocação é um chamado divino, não é uma iniciativa pessoal, não é 
fruto dos méritos pessoais, é simplesmente dom de Deus. E este dom passa
 por um caminho interior, às vezes por momentos obscuros e até pela 
experiência do sofrimento, por crises como vemos no dramático testemunho
 de um vocacionado, o profeta Jeremias (cf. Jr 20,7-9).
Todos os grandes vocacionados e vocacionadas deixaram a história da 
sua vocação, do seu encontro com Deus, dentro do qual compreenderam a 
sua vocação e missão. Cada um com o seu estilo, de forma diferente, mas 
sempre com certeza, segurança e firmeza e todos também deram testemunho 
que a vocação passa por momentos de obscuridade onde até parece que Deus
 abandonou o seu “vocacionado”. Jeremias (650 a.C) aos vinte anos tem 
plena consciência de sua vocação de profeta. Ele não tem essa vocação 
por capricho, nem porque goste, mas porque Deus o chamou: “Antes mesmo 
de te modelar no ventre materno, eu te conheci; Eu te constituí 
profeta.” (Jr 1,5)
A certa altura de sua caminhada o profeta analisa as consequências de
 sua vocação numa crise vocacional: “Tu me seduziste, Senhor, e eu me 
deixei seduzir; tu te tornaste forte demais para mim, tu me dominaste.” 
(Jr 20,7) “É a crise mais forte, mais dura e graças à qual possuímos uma
 experiência do que realmente é e implica uma vocação, em que consiste 
vivencialmente a inspiração profética... A intimidade de Jeremias fica a
 descoberto. Com a imagem mais atrevida que encontramos em toda a 
Bíblia, ele acusa Deus de tê-lo enganado, de tê-lo seduzido sem que ele 
pudesse resistir: como se engana e seduz uma jovem virgem para depois a 
deixar”. (Bíblia Litúrgica)
“Seduziste-me Senhor e eu me deixei seduzir!” Um dos verbos mais 
famosos da linguagem profética está presente nesta confissão: “seduzir”.
 O profeta confessa que ele se deixou seduzir e os seduzidos são sempre 
os apaixonados ou fascinados. No fundo este desabafo é um canto de amor.
 Na verdade o profeta sente Deus assim, um forte sedutor. Diante do seu 
fascínio, não pode resistir. Mas, ao mesmo tempo se sente enganado por 
Deus. “O Senhor prometera-lhe estar com ele. Enviara-o a construir e a 
destruir. Até ao presente apenas lhe havia falado de destruição, 
convertendo-se o profeta no objeto de de todos, ao não terem cumprimento
 as suas palavras. Onde estava zombaria o construir que lhe tinha 
prometido? Sente-se decepcionado, enganado. O seu único e fatídico grito
 é sempre: “violência..., opressão”. O que parecia uma vocação de amor 
converteu-se numa ditadura, numa imposição. Na sua humana fraqueza, 
Jeremias decidiu esquecer-se para sempre do Senhor, não mais voltar a 
ser profeta. E precisamente nesse momento crítico, quando pensa que tudo
 está resolvido, acha-se aprisionado entre a sua liberdade e o poder da 
Palavra. Algo intrínseco que se apodera dele, que o domina, o vence e se
 lhe impõe novamente a partir de dentro, com a força e o calor de um 
fogo devorador.” (Ibid. Bíblia Litúrgica)
A vocação cristã não é um chamado ao sofrimento cego, mas o caminho 
da própria vocação passa necessariamente pela cruz. Não é fácil viver a 
vocação cristã, ser cristão, nunca foi fácil e  nem nunca será. Todos 
nós gostaríamos de um Cristo e um cristianismo mais “light”, menos 
radical, mais adaptável, compatível com outras tendências da sociedade 
atual. Porém, não é isso o que nos fala o próprio Jesus, ele insiste em 
nos falar  para segui-lo, tendo que assumir sua vocação.
Depois da “profissão de fé e primado de Pedro” em Cesaréia de Filipe 
(cf. Mt 16, 13-20). Jesus começa a anunciar o que lhe leva a Jerusalém e
 faz a primeira previsão do que ali vai acontecer. Jesus vê claro que 
como havia sucedido a Jeremias ou a todos os profetas, ele não escapará.
 (cf. Mt 16, 21-27) Este texto evangélico não é uma lenda ou uma 
invenção da comunidade cristã depois dos acontecimentos da paixão, 
estamos diante de um fato genuinamente histórico. O diálogo de Pedro com
 Jesus é um dos fatos mais autênticos do relato evangélico, um dos 
momentos mais dramáticos e tensos da relação de Jesus com Pedro. Ele não
 entende e se escandaliza com o messianismo de Jesus. Jesus quer revelar
 a ele e a seus discípulos o verdadeiro messianismo e isto provoca o 
escândalo. O texto é autêntico precisamente por que é desconcertante. 
Por que a Igreja manteve este diálogo na transmissão do material 
evangélico, se quando Marcos, Mateus ou Lucas o escrevem, Pedro já deu 
sua vida pelo Mestre no martírio? Exatamente porque era a verdade!
Jesus começou a explicar a seus discípulos que tinha que ir a 
Jerusalém, sofrer muito e que fosse morto pelos líderes dos judeus, 
assim ele revela o verdadeiro caminho do Messias. Jesus anuncia o 
programa do “Filho do Homem” que é o verdadeiro sentido do messias nos 
planos de Deus, nas Escrituras, o caminho do sofrimento do Servo. Na 
humilhação da morte, da vida dada, da cruz, se manifesta o poder de Deus
 e, sobretudo o seu amor misericordioso pela humanidade caída. Como é 
difícil entrar no mistério de Jesus na cruz! O mistério da cruz 
necessita uma explicação que só quem pode dar com autoridade é o próprio
 Jesus.
Pedro que acaba de reconhecer Jesus como o Messias, Filho de Deus, 
levou-o à parte e se pôs a censurá-lo dizendo: “Deus não o permita, 
Senhor! Isso jamais te acontecerá!” (Mt 16,22) O caminho marcado por 
Jesus é escandaloso para Pedro. Sinceramente ele e seus companheiros, os
 mais próximos de Jesus, não entendem o projeto da cruz, não entendem 
que no fracasso e debilidade da cruz possa se manifestar o poder e o 
amor de Deus! Não entendem a verdadeira personalidade e vocação de 
Jesus. Será necessária a revelação pascal posterior e o dom do Espírito 
para penetrar no mistério da personalidade e missão do Cristo. Pedro se 
interpõe no caminho e nos planos de Deus. Como os outros discípulos não 
estavam de acordo com Jesus, porque um messias não devia sofrer, como se
 havia ensinado as tradições judaicas: isso desmontava a visão 
messiânica. A ele lhe horroriza que o messias que ele pensa, invencível e
 imortal, possa ser submetido à humilhação, ao desprezo e à morte 
violenta e humilhante! Isso é impossível! Isso não se enquadra com as 
esperanças pessoais e do povo naquelas circunstâncias históricas. Então 
se atreve a intervir para dissuadir Jesus desse caminho, quer corrigir o
 profeta com um messianismo fácil, nacionalista, tradicional, 
religiosamente cômodo. E Jesus lhe exige que se comporte como verdadeiro
 discípulo.
Comparemos estas palavras ditas agora com Então Pedro recebe de Jesus
 uma das reprovações mais duras que há no evangelho: “Afasta-te de mim 
Satanás! Tu me serves de pedra de tropeço, porque não pensas as coisas 
de Deus, mas as dos homens!” (Mt 16,23) as palavras anteriores de 
elogio: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi a 
carne ou sangue que te revelaram isso, e sim meu Pai que está nos céus. 
Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha 
Igreja...” (Mt 16, 17-18) Essa é a chave interpretativa do mistério de 
Jesus. O mistério da cruz transborda as capacidades humanas; não as 
anula, nem as destroi, nem as despreza, simplesmente as supera porque se
 trata de um plano divino, decidido desde toda eternidade e que se 
realizou na plenitude dos tempos. Pedro deve saber que ele por si só não
 alcança compreendê-lo. Satanás tem muito interesse que este projeto 
seja entendido como inaceitável, insensato e irracional. Na mentalidade 
da época Satanás representa o contrário do projeto de Deus, o Reino, 
pregado por Jesus, causa da sua vida e da sua entrega. Jesus coloca 
Pedro à altura de Satanás, porque sem sabê-lo ele se converteu em um 
tentador, opositor ao seu projeto, que se interpõe no caminho da cruz e 
que o rejeita. Jesus com esta sua recusa quer dizer aos seus discípulos 
que eles têm a mesma mentalidade das outras pessoas, da teologia de seu 
tempo, não pensam como Deus. E então, olhando para os que lhe seguem 
lhes fala da cruz: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, 
tome sua cruz e siga-me.” (Mt 16,24)
No texto a identificação entre cruz e vida pessoal é indiscutível: 
para seguir Jesus tem que levar a cruz. Por isso a cruz é a vida mesma, 
nossa própria vida. Se olharmos assim a vocação cristã, muda muita coisa
 em nossa escala de valores. A cruz, já não será aquela triste realidade
 que há de se fugir a todo custo. Não, a cruz será um caminho de 
santificação, a cruz se converte de instrumento de tortura e sofrimento 
em sinal de salvação para todos os que creem. No fundo trata-se de 
compreender o sentido salvífico da cruz; de compreender que o caminho da
 felicidade e paz interior passa pelo caminho estreito do calvário e da 
aceitação da cruz.
Todos temos nossas cruzes, crises, obscuridades e sofrimentos. Há 
momentos em que parece que já não somos capazes de ser fieis à nossa 
vocação e a todos os compromissos assumidos. Os esposos já não sentem 
forças para permanecerem fieis a seus compromissos de amor “para 
sempre”; os pais e mães não sabem como educar sua família; pessoas 
consagradas passam por momentos obscuros ou crises na sua vocação e 
sentem a tentação de abandonar tudo; situações da família, da Igreja e 
do mundo. Como posso eu permanecer fiel aos compromissos assumidos? Não 
terá sido tudo mera ilusão? Não será ilusão minha entrega, minha doação 
aos outros? Tudo estará destinado a desmoronar com o passar o tempo e a 
fragilidade humana? Pois é exatamente neste momento quando mais se deve 
crescer em nós a virtude da perseverança, da esperança e quanto mais 
fiel preciso ser à própria vocação.
Não abandonemos o caminho já percorrido, não atiremos a vocação pela 
janela. Não percamos a confiança naquele que nos chamou a uma vocação 
santa. “Nada te perturbe, nada te amedronte. Tudo passa, a paciência 
tudo alcança. A quem tem Deus nada falta. Só Deus basta!” Diz Santa 
Teresa de Ávila (séc. XVI) que entendia muito bem desses momentos 
obscuros de sua vocação e missão.
Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002.
João Paulo II, Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte. São Paulo, Paulinas, 2001
Vários autores. Comentários à Bíblia Litúrgica, Portugal, Gráfica de Coimbra 2
Disponível no site da Diocese de Campina Grande
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